
Nos últimos anos, o Brasil tem vivenciado um cenário político em que discursos e condutas antidemocráticas passaram a ocupar papel central no debate público, o que impôs ao Poder Judiciário, em especial ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao Supremo Tribunal Federal (STF), o dever de resguardar os pilares da democracia, muitas vezes por meio da decretação de inelegibilidades. O fundamento jurídico e os reflexos das decisões recentes que consolidaram a possibilidade de declarar inelegíveis agentes públicos ou políticos que atentam contra o regime democrático, especialmente com base na Lei da Inelegibilidade (LC nº 64/90) e na Constituição Federal.
O artigo 14, § 9º, da Constituição Federal determina que a lei deve estabelecer casos de inelegibilidade para proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício do mandato, e o normal funcionamento das instituições democráticas. A Lei Complementar nº 64/1990, com as alterações introduzidas pela Lei da Ficha Limpa (LC nº 135/2010), prevê em seu artigo 1º, inciso I, alínea “d”, a inelegibilidade dos que tenham contra si decisão da Justiça Eleitoral que os declare culpados por abuso de poder econômico ou político. Ainda, a alínea “h” do mesmo dispositivo prevê a inelegibilidade daqueles que forem condenados por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao erário e enriquecimento ilícito. O ponto central, no entanto, está na interpretação extensiva do que constitui abuso de poder político com reflexos antidemocráticos.
A jurisprudência recente do TSE ampliou a compreensão do que configura abuso de poder político à luz da proteção do processo eleitoral. Em especial, o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, julgado em 2023, é emblemático. Na ocasião, o TSE o declarou inelegível por oito anos, por entender que o uso da estrutura da Presidência da República para atacar o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas representava conduta grave, atentatória à normalidade e à legitimidade do pleito. O voto condutor destacou que a liberdade de expressão no contexto eleitoral encontra limites quando extrapola os direitos fundamentais e compromete a confiança pública nas instituições democráticas, em especial na Justiça Eleitoral.
O Supremo Tribunal Federal tem atuado em consonância com o TSE ao afirmar que o Estado Democrático de Direito não tolera manifestações que incitem a ruptura institucional ou a desobediência às decisões judiciais. Em julgados envolvendo parlamentares e líderes políticos, o STF tem reafirmado que a imunidade parlamentar material e a liberdade de manifestação política não se estendem a discursos antidemocráticos, golpistas ou que estimulem atos de violência institucional (cf. ADPF 572, Inquérito 4781 e ADI 7021). Ademais, com a inclusão do artigo 359-L no Código Penal (Lei nº 14.197/2021), que trata de atentado ao Estado Democrático de Direito, criou-se um novo paradigma penal que também pode servir de base para inelegibilidades futuras, caso haja condenações com trânsito em julgado.
O TSE tem assumido um protagonismo relevante, que alguns setores criticam como ativismo judicial, mas que pode ser visto como uma resposta necessária frente à escalada de discursos extremistas e tentativas de deslegitimação do processo eleitoral. A jurisprudência tem caminhado para considerar como inelegíveis não apenas aqueles que praticam atos materiais de violência ou tentativa de golpe, mas também os que utilizam a máquina pública, redes sociais e eventos institucionais para minar a credibilidade das eleições, configurando abuso de poder com natureza antidemocrática.
A tendência do TSE é ampliar o cerco a atos e discursos antidemocráticos nas campanhas eleitorais. Com o uso crescente das redes sociais, deepfakes e inteligência artificial, é esperado que novas regulamentações sejam editadas para inibir conteúdos que desinformem, instiguem a violência institucional ou promovam ruptura democrática. Assim, candidatos e partidos devem estar atentos às condutas que, mesmo na esfera opinativa, possam ser interpretadas como atentatórias à normalidade das eleições. A inelegibilidade por atos antidemocráticos deixa de ser um instrumento excepcional para se tornar um elemento estruturante da proteção constitucional ao regime democrático.
As decisões do TSE e do STF que impõem a inelegibilidade por atos antidemocráticos demonstram um esforço institucional para preservar o Estado de Direito, mesmo diante da complexidade do atual cenário político. A jurisprudência tem evoluído no sentido de dar concretude ao comando constitucional que exige moralidade e respeito às instituições como requisitos essenciais à elegibilidade. A atuação firme da Justiça Eleitoral, respaldada por fundamentos constitucionais e legais, reforça que não há espaço no sistema eleitoral brasileiro para candidaturas que flertem com o autoritarismo, a desinformação e o ataque às instituições democráticas. O compromisso com o processo eleitoral livre, legítimo e transparente é, e deve continuar sendo, cláusula pétrea da democracia brasileira.
*DANÚBIO CARDOSO REMY ROMANO FRAUZINO é advogado, mestre em Direito e especialista em Direito Eleitoral.